Protagonismo e demarcação de terra: pelo que lutam as mulheres indígenas
Mariana Gonzalez
De Universa
19/04/2021 04h00
Protagonismo e demarcação de terra: pelo que lutam as mulheres indígenas Kaê Guajajara é música, compositora e escritora Imagem: Arquivo pessoal Mariana Gonzalez De Universa 19/04/2021 04h00 O Brasil tem pelo menos 817 mil indígenas divididos em 305 etnias, que têm diferentes tradições e falam diferentes línguas. Por isso, não dá para falar das mulheres indígenas como um grupo homogêneo. Para tentar entender pelo que algumas delas lutam em 2021, Universa ouviu três ativistas de diferentes etnias. Nem todas vivem em aldeias, nem todas se identificam como feministas, mas apresentam pelo menos duas demandas em comum: a busca por protagonismo e a demarcação dos territórios.
Kaê Guajajara é música, compositora e escritora
"A Lei Maria da Penha não atende mulheres indígenas"
"Meu povo, Tupinambá, é historicamente matriarcal. Temos mulheres muito fortes na liderança da aldeia, e mesmo assim ainda existe machismo, violência, e muitas opressões às mulheres — tudo isso por causa do patriarcado, do machismo, que não fazem parte da nossa cultura, mas chegaram com a colonização há 500 anos e ainda está entre nós.
A violência doméstica ainda é pouco discutida nas aldeias. Há muitos anos existem reuniões de mulheres, mas só se falava de artesanato, agricultura. Quando eu comecei o trabalho com as mulheres, em 2014, muitas diziam que não existia violência dentro das aldeias delas, mas aí a gente começou a falar de Lei Maria da Penha, diferentes tipos de violência, relacionamento abusivo, e elas começaram a dizer: 'Na minha aldeia tem violência, mas eu não percebia". O que a nossa Rede Pelas Mulheres Indígenas incentiva é que as mulheres conversem sobre esse tema, troquem experiências, e que as aldeias criem mecanismos de enfrentamento à violência. As aldeias têm seus próprios sistemas jurídicos, e cada comunidade precisa decidir como lidar com esse problema. Eu, que sou Tupinambá, não posso dizer como uma aldeia da Amazônia deve agir. Na minha comunidade, está acontecendo de forma muito organizada: quando tem um caso de violência doméstica, a comunidade vai lá e diz: 'Você, homem, vai ter que sair da aldeia e não voltar mais. E a mulher vai ficar'. O coletivo passa a ser a segurança daquela mulher. A Lei Maria da Penha, na prática, não atende às mulheres indígenas, porque trata as mulheres de forma igual, como se todas estivessem na cidade, com acesso a transporte, a delegacias, e falando a mesma língua. Mas nós moramos em áreas remotas, de difícil acesso. A principal questão que nos une, enquanto mulheres indígenas, é a demarcação do nosso território.
Além da violência que toda mulher sofre, a não demarcação nos deixa vulneráveis a todo tipo de violência, porque permite que pessoas estranhas entrem no nosso território e cometam estupros, violência física, tráfico de mulheres. A demarcação é importante para que a gente tenha segurança de andar nas aldeias. Tem homens indígenas que são agressores, claro, mas o risco aumenta muito quando nossos territórios estão abertos a pistoleiros, fazendeiros vizinhos, brigas por terra."
Potyra Tê Tupinambá é advogada e faz parte da gestão da Rede Pelas Mulheres Indígenas, que luta contra a violência doméstica e outras violações de direitos
Potyra Tê Tupinambá é advogada e gestora da Rede Pelas Mulheres Indígenas.
A gente diz que é indígena e ouve: 'Não parece'"
"Existe uma diferença muito grande entre indígenas aldeados e indígenas em contexto urbano, que são ainda mais invisíveis. As mulheres que estão na cidade não têm direito de falar são indígenas. Quantas vezes fui chamada de índia do Paraguai? O último censo mostra que somos mais de 40% vivendo nas cidades. Onde a gente mora? Na zona sul? Nos condomínios de luxo? Não, a gente vive nas periferias e nas favelas. Mas a gente não aparece lá, fica invisível, entra na estatística da população negra Foi uma briga para o pessoal da cidade poder tomar vacina contra a covid-19. Ser indígena não é uma questão geográfica, é genética, então envolve possíveis doenças e resistência imunológica. Os indígenas em contexto urbano muitas vezes já estão misturados, mas isso não quer dizer que não temos o direito de dizer quem somos. Em delegacia, escola, hospital, a gente diz que é indígena e ouve "não parece". Essa é uma das piores dores que a gente sofre nas cidades. Nesse país se convencionou dizer, muito por conta de Gilberto Freyre [autor de "Casa-Grande & Senzala"] que as indígenas se davam por miçanga, por farinha. Ainda somos tratadas assim no imaginário masculino. Tem homem que diz que quer namorar uma índia como se estivesse falando de um ET Nós lutamos pela demarcação de terras porque não queremos perder nossa cultura, nossos maridos, filhos, irmãos, mas também porque a demarcação nos protege. Você acha que quando um madeireiro invade uma aldeia, ele não estupra? Isso acontece em toda a história do Brasil, inclusive hoje. Tem uma pesquisa da ONU Mulheres que diz que uma a cada três mulheres indígenas já foi estuprada [o dado é de um relatório de 2010]. Durante muito tempo existia uma divisão dentro da aldeia em que as mulheres engravidavam e casavam cedo, e cabia a elas cuidar, cozinhar, cultivar. Era muito difícil fazer algo fora disso, ter uma profissão, entrar na política. Mas algumas lideranças mais velhas, pajés, caciques, foram entendendo que era importante que meninos e meninas estudassem, tivessem um trabalho — até porque a gente não consegue mais viver da terra, destruíram as matas, acabaram com a caça e com a limpeza dos rios. Hoje, muitas mulheres indígenas estão estudando, se formando e voltando para suas comunidades como médicas e professoras. Assim elas ajudam outras meninas a fazer o mesmo trajeto. Aos poucos fomos conquistando espaço, indo à faculdade. Foram 30 anos sem uma indígena no Congresso e hoje temos a Joênia Wapichana, como exemplo de onde podemos chegar."
Marize Vieira de Oliveira é guarani, professora de história, mestranda na área de educação em relações étnico-raciais pela UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro) e secretária-executiva da Associação Indígena Aldeia Maracanã, no Rio de Janeiro.
"Nosso território é nosso corpo, nosso espírito"
"Eu não me identifico como feminista porque não acho que a luta feminista contemple as mulheres indígenas. Esse movimento foi criado por mulheres brancas numa época em que nós não éramos sequer considerados seres humanos. Enquanto elas lutavam por direitos trabalhistas, por um lugar na sociedade, nós nem existíamos para essa sociedade — e ainda não existimos, a verdade é essa. Não adianta a gente ficar falando só de mulheres pretas e brancas e esquecerem das mulheres indígenas, que estão ainda mais à margem. Nós queremos falar, ser ouvidas, e não vistas como uma coisa do passado, como muita gente ainda nos vê.
O que une as mulheres indígenas na luta por direitos é a demarcação de terras. Nosso território é nosso corpo, nosso espírito. E as mulheres não indígenas podem ser nossas aliadas não silenciando as nossas falas.
As mulheres indígenas ainda sofrem hiperssexualização. Se lá atrás nós fomos estupradas para criar todos esses brasileiros, fazer nascer tudo isso, hoje em dia isso ainda se mantém, infelizmente. Está infiltrado na cabeça dos brasileiros. É muito comum a gente ouvir comentários como "nunca fiquei com uma índia, tenho vontade" ou "queria ter um filho com uma índia". Em 2021.
Enquanto mulher indígena, eu luto pela nossa existência em políticas públicas, e pela inserção da história dos povos originários nas escolas. Eu faço palestras em escolas para conscientizar alunos, pais e professores, fazer com que a nossa luta seja ensinada, porque ainda é muito reproduzido o discurso do colonizador, o ponto de vista de quem invadiu. E também luto pela nossa inserção nas artes, especialmente no mercado da música. Não vemos indígenas entre os artistas mais conhecidos porque o mercado da cultura não nos dá espaço. Falar sobre cultura indígena é colocar o Brasil frente a uma realidade que eles acham que está no passado, mas que é um presente bem presente. O Brasil não quer ficar frente a frente à responsabilidade com os povos originários, ao genocídio desenfreado que acontece há 521 anos e só avança. Quem vive na cidade está exposto a uma cultura que não é a nossa, e toda a minha vida, eu e minha mãe lutamos contra esse apagamento das nossas tradições. É isso que eu quero para a minha filha: que ela conheça a história dela e cresça inserida na nossa cultura. É muito difícil, mas também é muito satisfatório ver ela se envolvendo mesmo sem estar numa comunidade demarcada. Mesmo tendo só 4 anos, ela já tem bastante noção de quem ela é, de quem nós somos."
Kaê Guajajara é cantora, compositora, atriz, arte educadora e escritora. É autora do livro Descomplicando: que você precisa saber sobre os povos originários e como ajudar na luta antirracista.
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