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‘O funkeiro cult sempre existiu, a página só mostrou ele para o Brasil´


"Hoje vamos falar desse mano aqui. Olha o bigodão de vilão dele, Al Capone! Esse mano é o Nietzsche. Sabe aquele mano que todo mundo fala, mas ninguém entende muito bem as ideia dele –sé loco! Mó roda gigante, isso aí é moiado. Tá ligado? É desse mano aí que a gente vai falar hoje”.



Se perdeu? Esse é o Marcelo Marques, 18, estudante de história e talvez a maior novidade do momento no campo da filosofia. Talvez você já tenha ouvido falar dele, mas certamente por seu apelido Audino Vilão. É um moleque chave, de bigode fino e cabelo na régua que tem ensinado sobre filosofia com dialeto da quebrada.

Mas, filosofia? Se você é da periferia e estudou em escola pública sabe que essa não é uma matéria facilmente encontrada na grade curricular. “Eu mal tive filosofia no ensino médio, nas aulas era mais um copia e cola, decora texto, não existia o pensar filosófico”, relembra Audino.


Muitos creditam isso à última reforma do ensino médio, onde filosofia não é obrigatória no últimos três anos escolares. A justificativa é que boa parte dos alunos chegam próximos da graduação com deficiências graves em outras disciplinas e ter filosofia não seria uma prioridade. Será?


“Com 16 anos eu peguei o livro do Nietzsche, ‘O Nascimento da Tragédia’. Nem cheguei a ler ele inteiro na época, mas fiquei encantado com a filosofia” diz Vilão. Ele ainda conta que, quando leu aquelas páginas, enxergou que aquilo era muito diferente da escola. Foi aí que o conceito e ética do filósofo começou a moldar o pensamento crítico do jovem.


Contrariando as alegações do Ministério da Educação ao realizar a reforma da educação em 2018, um estudo da FEE (Education Endowment Foundation) mostrou que ensinar filosofia básica no ensino fundamental ajudou na melhora do desempenho em leitura e matemática para alunos em uma escola na Inglaterra. Já no Brasil, jovens chegam ao ensino médio com desempenho em leitura e matemática abaixo da média esperada.


“É engraçado pensar que depois que o jovem sai da escola que vai se interessar pela literatura”, afirma Dayrel Azevedo, 21. Ele vive em Compensa, um dos bairros mais violentos de Manaus, e é criador do perfil do instagram Funkeiros Cult. “Quando acaba a escola, o jovem fica bem perdido sem saber para onde ir, alguns arrumam um bico, outros vão para o exército e tem aqueles que optam pelo trabalho ilegal, eu fui fazer bico”, conta Dayrel.


Com mais de 220 mil seguidores e até recentemente citado pelo advogado Silvio de Almeida no Roda Viva, o perfil divulga memes dos “cria” lendo um livro e sempre com um frase no estilo quebrada. Por exemplo, para explicar o livro do médico francês Nostradamus, a legenda que acompanha é a seguinte: “Bruxão já sabia das fita antes mesmo dos B.O. acontecer”.


Mas se engana quem acha que o perfil é puramente de humor. “Quando você sai da sua bolha, percebe que a gente que gosta de funk e se veste como funkeiro é muito zoado, é tirado como mal educado, burro, e isso me deu muito mal estar”.


Ele conta também que nós da periferia nunca somos associados a profissionais como jornalistas, advogados, médicos ou filósofos. A contradição é que o rap, gênero criado e popularizado pela favela, é basicamente a história das comunidades do Brasil e responsável pela construção da ética de muitas pessoas na quebrada.

“Foi fazendo um bico na universidade que eu percebia ainda mais a desigualdade entre quem tem acesso a educação e quem não tem”, completa Dayrel. Com isso em mente, ele criou a página no Instagram e seu primeiro meme era do seu escritor preferido Franz Kafka, com o livro “A Metamorfose” e a legenda: “barata é loko e o processo é lento”.


Para Dayrel, a página levanta três bandeiras: indica o livro, a dos memes e a do funkeiro que gosta de literatura. “A página só cresceu porque funkeiro cult sempre existiu, a página não criou o moleque funkeiro que lê, ele sempre existiu, a página só mostrou ele para o Brasil”.

Como diz a Constituição, a educação é um direito de todos, seja para o boy ou para o quebradinha. Por isso, enxergar alguém com todo estereótipo de periferia como um provável acadêmico é muito mais do que derrubar apenas um tabu, é tornar comum um direito constitucional.

 

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